quinta-feira, 14 de agosto de 2008

POEMA ESTAPAFÚRDIO

Meia noite! Bate o sino de som fino na igrejinha de padre Eulino. O sol a pino brilhava cristalino, adamantino, redondo como um pepino. Na copa verdejante das árvores secas, corujas agourentas, paradas e mudas, pulavam de galho em galho, soltando seus trinados maviosos e fúnebres. Um silêncio barulhento e de pedra pesava levemente sobre aquele cenário bucólico e de além-túmulo. Um vento frio e cortante soprava forte soltando uivos de lobo faminto, mas nenhum galho, nenhuma folha, nenhum cisco se mexiam.
Um homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca, nu, com as mãos nos bolsos, sentado numa pedra de pau, lendo um jornal sem letras ao reflexo de uma lamparina apagada, calado, assim falava:
- O que é melhor, ser Henrique ou enriquecer? Ser padre ou padecer? Ser triste ou entristecer? Já dizia o filófobo Falcão, rei da parvoíce, em uma de suas bostíferas e rapadúricas reflexões, que as quatro coisas melhores da vida são três: saúde e mulher.Mas eu não nunca pude ter essa única coisa. Por isso eu quero morrer, mas morrer com requintes de crueldade; se possível, suicidando-me a mim mesmo lentamente, lentamente... num suicídio macabro, canibalesco e triplamente qualificado. Nunca como aquele pobre rapaz que não pensava em nada e, um belo dia, resolveu refletir. Por azar, caiu em si mesmo. Além de fraturar o pensamento, quebrou a bacia, derramando todo o líquido do corpo, morrendo de sede e com os miolos esturricados. Muito menos como aquele pobre homem que resolveu se matar cortando, ele mesmo, com um só golpe de espada, a própria cabeça. Eu estava lá e nunca mais saiu da minha mente aquela cena terrível: um corpo decapitado, debatendo-se no chão nos estertores da morte, ainda teve forças para estender os braços, apalpar em redor até apanhar a cabeça ensangüentada, beijá-la carinhosamente murmurando: perdão! perdão! adeus! adeus!. E depois exalou o último suspiro Mas, por falar em morte, o que seria melhor para mim: morrer ou perder a vida? É claro que é muito pior morrer. Perder a vida não é lá tão ruim assim, porque aquilo que se perde pode ser encontrado de novo. Mas morrer...morrer é terrível. Já pensou você se deitar alegre, bem de saúde, acordar no outro dia, abrir os olhos e ver que está morto? É triste... é muito triste!
Mal terminara aquele solilóquio disparatado, confuso e incoerente, aquele homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca, de repente, não mais que de repente, levanta-se num pinote, os olhos esbugalhados, os cabelos arrepiados, e diz com voz firme e vacilante:
- Acho que estou vendo alguma coisa! Vejo, ao longe, o mato quieto se mexer e ouço um barulho estranho. Sou cego, surdo e mudo, mas a minha vista e os meus ouvidos nunca me enganaram. Sim, estou vendo tudo direitinho. Parece que vem vindo alguém. E não é um só, é uma trinca de dois...
Nisso, os dois vultos, nitidamente vestido de preto, se aproximam.
- Quem são vocês? O que querem? Pergunta com voz trêmula aquele homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca e que tinha verdadeiro pavor de almas do outro mundo.
-Filho, você não precisa ter medo, disseram ao mesmo tempo os dois vultos. Nós só queremos saber para que lado fica a igreja. Depois que morremos, você é a primeira pessoa que encontramos e achamos que você poderia nos...
Não terminaram nem de completar a frase, e aquele homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca, como que eletrizado, arranca em disparada mato a dentro e, depois de correr uma hora sem parar, finalmente cai exausto e cambaleante. Ergue os olhos e avista, ao longe, uma tênue luz. Estava muito escuro, mas ele vê claramente que era uma tapera. Reúne as últimas migalhas de força que ainda lhe restam e caminha em direção da choupana. Aproxima-se, bate palmas, não de alegria, mas para saber se há ali alguém. Logo aparecem dois vultos, um deles com uma lamparina erguida à altura do rosto.
-Peraí... quem são vocês? O que querem? pergunta cismadíssimo aquele homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca, com a voz já embargada pelo medo e suando frio.
-Filho, disseram os dois vultos, não está lembrado de nós? Há cerca de uma hora atrás nos encontramos naquele lugar perto do cemitério, lembra? E lhe perguntamos para que lado ficava a igreja, mas você se apavorou e correu. Não tenha medo, filho, pode entrar e nos fazer companhia. Não vamos lhe fazer mal. Eu sou padre e esse meu amigo aqui é o sacristão; estamos vagando pelo mundo como almas penadas, pagando os nossos pecados...
Mas aquele homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca não quer saber de conversa e, mais uma vez, sai em desabalada carreira pelo mato, não se sabe por quanto tempo correu. Finalmente, já sem forças cai ofegante e se contorcendo de dor à porta de uma capela abandonada. Empurra a porta emperrada, com o pé, e esta se abre rangindo, e ele entra se arrastando. À luz bruxuleante de uma vela vislumbram-se os vultos de um padre com o sacristão a celebrar a missa.
-Graças a Deus cheguei bem na hora da santa missa. Aqui é a casa de Deus. Finalmente estou a salvo e livre daquelas duas almas importunas, exclamou aliviado aquele homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca.
Não demorou muito e todas as luzes da capela se acenderam como por milagre, e agora dá para ver claramente o padre e o sacristão liturgicamente paramentados.
A missa terminou e o padre se virou para dar a benção final e, ao ver aquele homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca, diz com voz mansa e compassada:
-Filho, você por aqui de novo? Está lembrado de nós, quando nos encontramos na choupana? Agora você não precisa mais dizer para que lado fica a igreja, nós já encontramos.
Nem é preciso dizer qual foi a reação daquele homem cego, surdo, mudo, coxo e totalmente careca. O que se sabe é que saiu desembestado como um animal arisco acuado; embrenhou-se no mato e sua sina é correr, até quando e para onde não se sabe, porque em todos os lugares por onde passa sempre dá de cara com aquelas duas almas penadas.

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