quinta-feira, 23 de abril de 2009

O TORCEDOR

Toda vez que o time dele perdia, ele também perdia. Perdia a calma, a esportiva, a paciência, a cabeça e até a vontade de viver.
Chegou ao extremo de invadir o campo com o firme propósito de esganar o juiz ladrão que não marcou aquele pênalti claro, claríssimo. Mas, foi agarrado a tempo pelos seguranças.
Não admitia, também, chacotas, piadinhas e provocações da torcida adversária e, vez por outra, se metia em confusões e quebra-paus .
Quando o time vencia, ele também vencia. Vencia o medo, a timidez. Depois que entornava uma meiota de iaiá-me-sacode, pra comemorar, ficava hilário, afoito, perdia as estribeiras, a compostura e, em represália, passava a achincalhar abertamente os adversários, sobrando-lhe quase sempre, trompaços, safanões e alguns pontos na testa.

Uma vez, perdeu o juízo. Tomou uma carraspana brava por conta da vergonha daquela derrota humilhante. Perder era normal. Mas perder de goleada e ainda por cima cair na zona de rebaixamento era coisa que ele não admitia. Foi até à sede do time, disposto a descarregar um caminhão de impropérios e xingações contra a diretoria, o técnico e os jogadores. Mais uma vez foi prontamente contido e nem chegou a ser levado a sério por conta de seu visível estado de embriaguês.
Mas, futebol para ele era uma mania, um vício, uma paixão escancarada, uma devoção.
No fundo, sempre acreditava no poder de reação do seu time, na força e na raça dos jogadores. Pois, disso já tinham dado demonstrações. Não devia agora virar as costas para aquele time que tantas alegrias já lhe dera. Talvez até mais alegrias do que decepções.
Sempre ouviu dizer que futebol não tem lógica, e que dentro de campo tudo é possível, tudo pode acontecer, até um gol de virada aos quarenta e oito minutos do segundo tempo. E, dessa vez, tinha tudo para que isso pudesse acontecer: o time estava muito bem treinado, os jogadores totalmente motivados, e a torcida empolgadíssima. Não havia como não ganhar aquele jogo. Era uma questão de honra. Os jogadores tinham prometido buscar a vitória nem que fosse à custa do próprio sangue, da própria vida. Todos acreditavam numa vitória espetacular. A torcida, com certeza, ia comparecer em massa para prestigiar, para empurrar o time. Só o nosso torcedor fanático e doente, até agora ainda não tinha decidido se ia ou não assistir ao jogo.

- Você precisa ir ao estádio, Roberval! Você não pode deixar de ir! Não é possível que você vá perder um jogão como esse, incentivava um amigo.

E ele respondia indeciso:

-Sei não... acho melhor não ir...estou com um pressentimento ruim, o coração apertado...Se o time vencer, não sei se vou agüentar tanta emoção. Se perder, vou tomar outro porre, e aí não vai prestar. Não vou nem assistir pela televisão.

-Se é assim, ponderava o amigo, é melhor mesmo você não ir. Vai ter muita emoção e provocação e você vai ter problemas com a torcida contrária. Mas não tem problema. Eu vou gravar o jogo e você assiste logo depois lá em casa, com calma, e assim a gente aproveita para bater um papo e tomar uns birinaites.

Logo depois do jogo o amigo telefona aos berros:

- E aí, Roberval? Eu não disse? O time botou pra lascar! Jogou uma barbaridade! Arrasou aquele timezinho de meia pataca! Ganhou de sobra! Esbanjou categoria! Só não vou te dizer de quanto foi a goleada para não perder a graça. Mas pode vir correndo para cá e você vai ver a gravação e a gente vai comemorar!

_ Olha, Riva, disse ele se saindo, eu pensei direitinho e achei melhor não assistir a esse jogo. Agora que eu já sei que o time ganhou...tá bom até demais da conta. Do jeito que esse time anda azarado, vai que eu invento de assistir a essa gravação e o peste do time resolve perder...

O SUICIDA

Era um homem alto, franzino e de aparência mal cuidada, que costumava sentar-se num banco da pracinha, perto da minha rua.
O local arborizado, muito ventilado e aprazível, era o ponto de encontro de velhos amigos que vinham, quase todos os dias, nos fins de tarde, pôr a conversa em dia, jogar gamão, dominó e baralho, ou simplesmente matar o tempo em conversas fiadas.

Casais de namorados tinham lá suas cadeiras-cativas e aproveitavam os cantinhos mais reservados e menos iluminados, para os beijos mais ousados e as eternas juras de amor.

Senhoras também costumavam passear empurrando com leveza e cuidado os carrinhos com os seus bebês, e a criançada se esbaldava em brincadeiras as mais variadas, num corre-corre e pega-pega sem fim.

Todos se abraçavam e se cumprimentavam e ali não havia lugar para tristeza e solidão.
Mas aquele homem solitário e triste, que se sentava sempre no mesmo lugar, enigmático e sempre sozinho e mal humorado, alheio a tudo o que se passava em seu redor, nunca falava e se alguém vinha lhe perguntar alguma coisa , apenas balançava a cabeça afirmativamente ou negativamente e, quando muito, deixava escapar, aborrecido, um muxoxo ou uma imprecação.

Como freqüentador assíduo da pracinha, muitas vezes eu o observava de longe e via o seu olhar perdido e distante e a amargura, a dor e o desânimo estampados em seu rosto. E eu tinha muita vontade de me aproximar daquele homem para ouvi-lo e, quem sabe, até ajudá-lo com uma palavra amiga. Mas temia algum tipo de reação desagradável.

Certa vez, acerquei-me de coragem e fui sentar-me junto dele. Sua primeira reação foi levantar-se bruscamente e afastar-se, mas eu o segurei quase instintivamente pelo braço e disse timidamente:

- Amigo, você não quer conversar um pouco comigo?

Parece que a palavra amigo despertou alguma coisa que estava adormecida no fundo do coração daquele homem e ele tornou a sentar-se pesadamente

Fiquei alguns instantes sem saber o que dizer, mas logo comecei a falar quase à queima roupa:

- Eu também sou um sujeito desastrado, muito amargurado e cheios de problemas. Aliás, quem neste mundo não vive cercado de problemas? Eu gostaria muito de encontrar alguém com quem eu pudesse conversar e desabafar.

Parece que a minha tática de querer nivelar-me a ele e penetrar no seu mundo surtiu efeito,
pois o homem começou a falar:

- Duvido muito que exista no mundo um sujeito que tenha mais desgraças do que eu. Eu só estou aqui sentado neste banco, porque nem pra morrer eu presto! Se eu disser que eu já tentei o suicídio três vezes, ninguém vai acreditar. Já tentei me enforcar, já tomei veneno e já tentei pular do alto de um prédio e sempre teve um intrometido que apareceu e me salvou.
-Eu acredito. Mas o que foi que aconteceu de tão trágico na sua vida, que o levou a tomar uma decisão dessas? Perguntei procurando esticar o assunto.

- Minha vida é uma porcaria, disse ele. Tudo o que pode haver de pior no mundo já aconteceu comigo. A vida para mim não significa mais nada, por isso não quero mais viver.

Senti uma pena muito grande daquele pobre infeliz e tentei confortá-lo. E contei-lhe até a história de Jó, aquele patriarca que vivia na terra de Uz, na antiga Palestina e que tinha sete filhos e três filhas. Era muito rico. Possuía sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas, e tinha também um grande número de servos. Era considerado o maior de todos os homens do Oriente.

Certa vez, encontrou-se Deus com Satanás e perguntou-lhe: de onde vens? E ele disse: fui rodear a terra e passear por ela.

Então disse Deus a Satanás: Observas-te o meu servo Jó? Não há ninguém na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, que se desvia do mal.

Respondeu-lhe Satanás: ele só é assim porque tu o cumulas de graças, a ele , à sua casa e a tudo o que tem. Abençoas as suas obras, e os seus bens se multiplicam na terra.
Gostaria de propor-te um teste: estende a tua mão e toma-lhe tudo o que tem e, com certeza, ele blasfemará de ti em tua face!

- Muito bem! Aceito o teu desafio, disse Deus. Tudo o que ele tem está nas tuas mãos. Faze como quiseres. Só te peço que lhe poupes a vida.

Poucos dias depôs, Satanás impôs a Jó uma terrível desgraça: todos os seus haveres e animais foram roubados e todos os seus servos mortos a fio de espada, como também todos os seus filhos e filhas juntamente com suas casas e seus bens foram arrastados por um grande vendaval e foram soterrados e mortos.

Então Jô, ao receber a notícia de sua ruína, rasgou as suas vestes, raspou a cabeça, cobriu-se de cinzas e, prostrando-se por terra, adorou a Deus dizendo: nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá. O Senhor me deu e o Senhor me tomou! Bendito seja o seu nome!
Em tudo isso Jó não blasfemou, não pecou e nem atribuiu a Deus o motivo de sua desgraça.

Encontrou-se Deus novamente com Satanás e fez a mesma pergunta: De onde vens?
E ele respondeu: fui dar umas voltas pela terra.

Então disse Deus a Satanás: observas-te o meu servo Jó? Apesar dos castigos que lhe impuseste, ele ainda conserva a sua integridade
Respondeu-lhe Satanás: nada disso me convence! Gostaria de propor mais um teste!
-Toca-lhe nos ossos e na carne e ele certamente blasfemara de ti na tua face!

-Pois bem. Ele está no teu poder; mas poupa-lhe a vida, disse-lhe Deus.

Então Satanás saiu da presença de Deus e cobriu Jó de chagas malignas, fétidas e purulentas, desde a planta dos pés até o alto da cabeça.

Então Jó, sentado no meio das cinzas, raspava as suas feridas com um caco de telha.
Vieram sua mulher e seus amigos e zombavam dele dizendo: depois de tudo o que Deus te fez, ainda acreditas nele e conservas a tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre!

Mas Jó respondeu: vocês falam como falam os loucos!Não recebemos o bem das mãos de Deus?.Porque não receberemos também o mal?
E em tudo isso Jô não blasfemou, não pecou e nem se rebelou contra Deus.

Então mudou Deus a sorte de Jó e deu-lhe o dobro de tudo o que antes possuíra. Ele teve novamente sete filhos e três filhas e tornou-se mais uma vez o homem mais rico e poderoso de todo o Oriente.


Terminei a minha história, na esperança de ter comovido o nosso suicida, mas de nada adiantou.

- Tudo isso que o moço contou é muito bonito, eu até agradeço mas não vale nada pra mim, porque nada vai fazer eu mudar de idéia. Vou tentar o suicídio novamente e desta vez, estou com umas idéias na cabeça e não vai haver erro.

Levantou-se e saiu sem dizer mais nenhuma palavra.

Fiquei muito triste e decepcionado comigo mesmo por não ter conseguido tirar da cabeça daquele infeliz uma idéia tão obsessiva e absurda.

O tempo passou. Uns três ou quatro meses. E eu nunca mais vi aquele homem lá na praça. Dava mesmo como certo que ele havia posto em prática os seus planos e se matado.

Uma tarde, quando menos esperava, avistei o homem sentado de novo no mesmo banco da praça.
Bastante admirado e curioso aproximei-me dele e perguntei:
- Lembra-se de mim?
- Acho que sim...é...agora estou me lembrando. Você me contou uma história muito bonita, não foi?

- Graças a Deus você está aqui e desistiu daquela idéia maluca de se matar. O que foi que aconteceu? Perguntei
.
E ele contou:
- Naquele dia , quando eu saí daqui fui providenciar o material para o suicídio: comprei um revolver novo e muito bom, uma corda bem resistente e um vidro de veneno do tipo mais forte e violento e tracei um plano que não tinha como dar errado.
De manhã cedo peguei o revólver, a corda e o vidro de veneno e fui para a beira do rio e procurei um bom galho que dava bem para dentro da correnteza. A minha idéia era tomar o veneno, me enforcar e atirar na cabeça, tudo ao mesmo tempo. Se alguma coisa saísse errada, ainda me restava cair na água e morrer afogado no rio porque eu não sei nadar.

Planejei tudo e subi na árvore, amarrei firmemente a corda no galho e no meu pescoço, bebi o veneno, saltei e atirei na cabeça.
Agora veja só o que aconteceu: quando bebi o veneno e atirei na cabeça, errei o alvo e a bala cortou a corda. Despenquei do galho e caí de cabeça para baixo na correnteza, bebi muita água e vomitei todo o veneno que tinha tomado e fui arrastado por uns quinhentos metros pelas águas e fui avistado por uns canoeiros que estavam na margem e eles saltaram na água e me salvaram.

Depois disso eu comecei a pensar melhor e ver que eu não devo querer ser o dono da hora da minha vida. A vida e a morte pertencem a Deus. Vou fazer como aquele santo homem da história que você contou e aprender a receber com resignação tanto o bem quanto o mal, das mãos de Deus, e procurar viver, que é o melhor que eu tenho a fazer.
Suicídio, nunca mais!

Apertou minha mão, me deu um forte abraço e saiu cantarolando.

FERIADO NO INFERNO

Era carnaval, e os frades estavam iniciando, no convento, as penitências e o retiro espiritual de três dias, numa autêntica e santa maratona pela salvação das almas daqueles que se entregariam aos prazeres e às orgias próprias do reinado de Momo.

Um austero e virtuoso frade, que acabara de fazer a sua módica refeição do meio-dia, aproveitando o intervalo das orações, saiu a espairecer pelo aconchegante bosque vizinho ao convento e sentou-se à sombra benfazeja de um frondoso cipreste.

Embalado pela brisa amena e pelo gorjeio dos pássaros, logo estava ele mergulhado em profundo sono. Teve então um estranho e intrigante sonho: viu o convento tomado por uma legião de horrendos demônios, muitos deles dormindo recostados nos muros, juntos às colunas, portas, sacadas, nas escadas e balaústres, enquanto outros bocejavam sonolentos nas sombras do jardim e durante muito tempo permaneciam naquela pachorra, sem demonstrar nenhuma preocupação ou pressa.

Extremamente admirado com aquela situação inusitada, o frade então, aproximou-se de um demônio que estava vigilante e parecia ser o chefe, e perguntou:
- Diz-me, ó espírito do mal, por que tu e teus comparsas estais aqui a cochilar, sabendo que tendes grande trabalho a fazer aí fora no carnaval?
-Hoje, amanhã e depois é feriado no inferno. Ninguém trabalha. É nosso tempo de folga; a gente pode sair para onde quiser e fazer o que quiser, respondeu o demônio. E continuou:
-Será que não percebes que, durante o carnaval, nós demônios não precisamos trabalhar porque ninguém precisa ser tentado, pois todos que ali estão na folia já se entregaram espontaneamente às tentações, aos prazeres, às orgias e à luxúria e, portanto, que não precisamos nos preocupar com eles para levá-los à perdição?
-Então, por que vocês escolheram justamente o meu convento para descansar? Aqui é uma casa de oração e penitência. Aqui não se brinca carnaval, indagou o religioso.
Ao que , já meio irritado, o demônio respondeu:
-Imbecil, se aqui é uma casa de oração, jejum e penitência, é justamente aqui que temos grande e difícil trabalho a fazer. Temos ordens expressas de Lúcifer, para semearmos a discórdia e o pecado neste e em outros conventos, principalmente durante o carnaval, mas não é fácil. Ai de nós se não o fizermos! Cada frade que conseguirmos conquistar e perverter é um valioso troféu e motivo de festa e, com certeza, se eu conseguir desviar pelo menos um, serei promovido lá no inferno. Esses que aí estão comendo, bebendo, pulando, sambando, na orgia do pecado e praticando toda sorte de excessos, já têm seus lugares garantidos no inferno. Com esses não precisamos perder tempo!
E, dizendo isso, bateu palmas com extrema força e gritou com voz cavernosa:
- Ao trabalho, todos ! Chega de moleza! Acabou o feriado! Entrem no convento!
Como que eletrizados, todos aqueles demônios levantaram-se imediatamente e, fazendo grande algazarra, cada um correu para escolher um frade para ser tentado. O barulho acordou também o nosso frade que, erguendo-se num salto, meio atordoado, saiu em desabalada carreira rumo ao convento, julgando que dormira demais e que um horrível demônio corria atrás dele para tentá-lo.

DOUTOR RAIZ

Todo mundo sabia onde ficava a botica do Tenório – o Doutor Raiz.
Ficava ali no finalzinho da minha rua e não tinha como não encontrar porque o estabelecimento não chegava a ser grande, mas a placa com o nome Doutor Raiz, era descomunal e tomava quase toda a fachada da loja. Eu costumava brincar dizendo que, depois das muralhas da China, era a outra obra da engenharia humana que podia ser vista do planeta Marte. Ele ria e não se incomodava e muito menos pensava em retirar ou diminuir o tamanho da placa.

- A propaganda é a alma do negócio, dizia ele.

E era mesmo, porque não faltava clientela que vinha de toda parte e até de fora se consultar e experimentar as garrafadas, gororobas, poções e lambedores do Doutor Raiz. A maioria era gente simples e de boa fé, caboclos e matutos que acreditavam piamente que podiam curar suas doenças pelos poderes daquelas beberagens, manipuladas com as mais estranhas fórmulas e ingredientes pelo raizeiro.

Muito esperto e loquaz, o curandeiro exibia um invejável conhecimento de plantas, ervas e raízes, e para qualquer tipo de doença, incluindo olho grande, feiúra e quebranto, receitava logo com precisão o chá correspondente que ia debelar o mal. Para isso bastava recorrer ao seu variadíssimo estoque de uma infinidade de raízes, cascas, sementes, e ervas.

Se chegasse alguém com mal-dos-quartos ou mal-de-escancha, ou mal-das-ancas, ou quebra-bunda, o remédio era a garrafada do chá de erva-do-diabo-louco, erva-de-pai-Caetano, erva-do-homem-enforcado, erva-fedrorenta, erva-mijona,, erva-das-maleitas, erva-piolheira, tudo misturado com a raiz-de-barbeiro, raiz-de-pipi e raiz-do-padre-sabino.

Conta o meu amigo Valdir que, certa vez, foi procurar o Doutor Raiz, porque estava sentindo uma dor estranha atravessada na boca do estômago, e ele foi logo dizendo que era verme, organismo sujo e falta de lubrificação nas tripas. Receitou um purgante de folha de carrapateira com óleo de rícino, banha de peba e erva lombrigueira – dose única. Segundo o diagnóstico do remedista, ele estava precisando de um laxante para eliminar os vermes e desentupir a tripa gaiteira. Mas depois ele viu que não tinha nada de laxante e sim de lascante, porque danou-se a evacuar desonerado durante três dias, até lascar a boca do cano do escapamento, e aquele bostifício hemorrágico e desenfreado só estancou depois que ele tomou uma colher de chá de cimento branco diluído em meio copo d água, conforme lhe receitou seu Chico da Cachorra

Comecei então a observar melhor as manobras daquele charlatão e vi que na maioria de suas receitas ele acrescentava uma boa dose de malandragem, principalmente quando se tratava dos caboclos ingênuos que vinham encomendar suas garrafadas.

Minhas suspeitas acabaram de vez, quando vi, certa vez, ele receitando um pobre jeca empombado, com a barriga e os pés inchados:

-O que o senhor tem é uma tipografia supítica e golobosa que se tornou capotética, atingiu as pituitárias e provocou os canivões!
-E é grave, doutor? Perguntou o caipira, de olhos esbugalhados.
-Bota grave nisso! É difícil de curar mas dá-se um jeito. Só não tem jeito pra morte, que não é o seu caso. Se isso aqui não fosse um estabelecimento sério e eu fosse um cabra interesseiro, que quisesse lhe explorar, eu ia mandar o senhor tomar o sumo da folha seca, junto com o chá da raspa do chifre da cabra mocha, com o pó do cabelo da garrafa, misturado com um pouquinho de nada e uma pitada daquilo que não existe, que é a mesma coisa que deixar o senhor morrer à mingua. Eu vou fazer uma limpeza de organismo no senhor. Pra isso eu tenho aqui um produto que acabei de receber da Terra Santa. É caro, mas é tiro e queda, um verdadeiro milagre. Coisa de primeiro mundo.

Dizendo isso, foi lá dentro e, sem que o matuto percebesse, pegou um pedacinho de sabão Pavão, botou dentro de uma garrafa cheia d água, tampou e sacolejou bem até o sabão diluir e água ficar turva, com aquela corzinha azulada.

-Pronto, seu Raimundo, taquí o remédio. Só tinha esse e parece que estava guardado para o senhor. Como é para um amigo, vou fazer a R$ 20,00. Vai ter que passar um ano tomando esse remédio sem falhar um só dia. Uma colher de sopa vinte vezes a qualquer hora do dia e da noite. Beber muita água, não comer carne de porco, nem de paca e nem de peba, e não fazer nenhuma extravagância. Assim que acabar, volte aqui prá pegar mais.

CIUME

Aquela situação estava ficando insustentável. E Perigosa. A mulher tinha um ciúme doentio, mórbido, mortal. Era dessas que prometem matar ou mandar matar com os maiores requintes de crueldade e, depois, não fazem a menor questão de se entregar e ficar vinte ou trinta anos atrás das grades.
Farejava longe e andava desconfiadíssima. Aquele nome Carla na agenda do marido era uma obsessão que ficava martelando em sua cabeça, e poderia ser a prova definitiva da traição.
O amigo procurou alertá-lo:
- Você precisa ter mais cuidado, Alfredo. Não facilite. Você conhece a Vanda e sabe do que ela é capaz. Quem avisa amigo é! Apague imediatamente esses nomes femininos da sua agenda. Quando a Carla telefonar, por que você não anota o nome Carlos em vez de Carla? Pra todos os efeitos quem telefonou foi Carlos e assim a sua mulher não vai desconfiar. O mesmo você deve fazer com a Renata, com a Ângela, com a Patrícia, que passam a ser Renato, Ângelo, Patrício, e assim por diante.
A idéia era interessante. E ele começou a proceder como lhe aconselhara o amigo.
Vez por outra a mulher dava uma incerta em tudo o que era do Alfredo, e escarafunchava bolsos, gavetas, carteira, pasta e, principalmente, a agenda telefônica,. à cata de indícios de infidelidade. Mas só encontrava nomes masculinos. E acabava se conformando.
Uma vez, começou a ficar grilada com a grande freqüência com que o nome Paulo aparecia nas mensagens do celular: almoço de negócios com Paulo, jantar de negócios com Paulo, entrevista com Paulo, falar com Paulo, entregar documento a Paulo, etc.Resolveu interrogar o marido:
- Quem é esse tal de Paulo com quem você tanto se encontra, Alfredo?
- É o meu novo chefe lá na repartição, amor!
Alguns dias se passaram de completa calmaria. Estava certo de que tinham se acabado de vez as desconfianças da mulher, e a tranqüilidade voltara a reinar em sua vida. Mas, tanto fez o incorrigível donjuan, que acabou se descuidando e caindo no vacilo de fazer aquela anotação temerária e comprometedora: “ Encontro com Paulo hoje às 20:00h.” Era a peça que a mulher estava procurando para completar o quebra-cabeça de sua desconfiança.
Foi até à repartição do marido, disposta a colocar tudo em pratos limpos.
- Eu gostaria de falar com o Paulo, disse ela nervosa à recepcionista, e sem se identificar.
- Pois não, minha senhora. Só um momento, por favor, disse a simpática atendente.
Momentos depois apareceu um morenão alto, forte, bronzeado, sarado, que falou com voz meiga, quase feminina:
-Muito prazer, eu sou Paulo. E você quem é, posso saber?
- Eu sou a esposa do Alfredo, disse ela levantando a voz.
- Cumé qui é??? Esposa de quem??? Do Alfredo??? Du-vi-d-o-dó! O Alfredo não é casado. Ele sempre me jurou que era solteiro! Aquele cachorro me paga! Quanto a você, queridinha, pode ir tirando o seu cavalinho da chuva, porque o Alfredo já é meu. A gente já está junto há quase um ano. A gente vai casar, entendeu?

No dia seguinte, a folha policial exibia mais uma manchete macabra: “Louca de ciúme, mulher mata o marido com cinqüenta e nove facadas. A vítima teve os órgãos sexuais estraçalhados. A assassina se entregou depois à polícia”

CALDINHO DE MOTOCÓ

-Menino, como você está magro e abatido! Disse ele espantado e olhando fixamente para mim.
De fato, os três dias de carnaval tinham me deixado um tanto quanto derrubado e com aquelas olheiras de urso panda.
-Vou cuidar de você com o meu caldinho levanta-defunto! Me apareça aqui todos os dias depois do expediente, sem falta! Tudo por minha conta, ordenou ele.
Eu não era freqüentador assíduo daquele barzinho, apesar de ficar bem perto do meu trabalho; ia lá algumas vezes para tomar uma cerveja com os amigos. Não conhecia o tal caldinho milagroso e não alimentava qualquer tipo de intimidade com o Raimundo, dono do bar. Não podia deixar de estranhar aquela repentina e gratuita amabilidade. Não disse que sim, nem que não. Apenas esbocei um sorriso encabulado
Depois me disseram que o caldinho do Raimundo era de fato prodigioso, turbinado, vitaminado, afrodisíaco, que eu deixasse de ser besta, aproveitasse, etc.
-Vai lá, rapaz! Não custa nada experimentar! De graça, até injeção na testa..! brincavam os amigos.
Mesmo desconfiado, resolvi aceitar o tal caldinho de mocotó e quase sempre, depois do expediente, passava no barzinho do Raimundo, que sempre estava me esperando e fazia questão de me servir com prioridade a costumeira tigela cheinha da fumegante e suculenta porção.
Fiquei fã número um daquela iguaria e, nessa brincadeira, passei cerca de um mês usufruindo cotidianamente aquela maravilha de caldo e já sentindo os efeitos benéficos que ele estava operando no meu organismo.
Como não podia deixar de ser, achei que estava na hora de acertar as contas e fui falar com o Raimundo.
-Já faz um mês que estou tomando o seu maravilhoso caldo de mocotó, aliás, estou me sentindo muito bem, e agora quero pagar. Quanto é?
-Você não precisa pagar nadinha. É tudo por minha conta! Estou vendo que você agora está forte e corado, sem aquelas olheiras de um mês atrás. É assim que eu quero você, forte, sarado, musculoso, tesão. Espere aí um pouquinho que vou levar você para conhecer o meu apê, para a gente tomar uns drinks e bater um papinho.
Para bom entendedor...
Consegui escapulir dizendo que precisava antes passar rapidinho no escritório, que era pertinho, e que voltaria sem falta para acompanhá-lo. Está esperando até hoje. Eu, hein?
Soube depois que a fórmula mágica do caldinho de mocotó do Raimundo levava ovo de codorna, cheiro verde, pimenta de cheiro, alho, gengibre, catuaba, barbatana de tubarão, e testículo de boi, grão-de-galo, mas, os principais ingredientes que ele usava eram mesmo a malícia, a manha para pegar os rapazes e envolvê-los com seus ardis amorosos. O caldinho de mocotó era apenas o pretexto, a isca.

A Vingança

Dos vinte e cinco ovos que mamãe tinha deitado para a galinha de raça chocar, nenhum gorou. A ninhada nasceu todinha, forte, sadia; vinte e cinco pintainhos de penugem roxinha, alegres e barulhentos. A coisa mais fofa do mundo. Mas também, com todo aquele cuidado que ela tinha dedicado àquele afazer, dificilmente algum ovo teria se perdido. Eu era menino e ainda me lembro das muitas vezes em que ela se levantava altas horas da noite, principalmente quando chovia, para ver se a galinha estava cumprindo o seu papel de chocadeira, porque os ovos não podiam esfriar, e retirava um a um debaixo da gorda penosa, verificava a temperatura e examinava contra a luz da lamparina se todos os ovos tinham gerado ou se tinha algum goro. E ficava alegre e orgulhosa com o resultado do seu trabalho “ científico” ao ver a galinha choca, com seu cacarejado irritante, arrastando a prole pelo terreiro.
Todavia, isso significava restrições à minha liberdade de menino irrequieto e buliçoso. Mamãe não admitia que alguém dissesse nada e muito menos fizesse alguma coisa contra a galinha e os pintos, que tinham trânsito livre em todos os lugares, até dentro de casa e sempre deixavam sua marca de sujeira com as freqüentes cusparadas de cocô por toda parte. A gente tinha de andar com todo cuidado para não escorregar na titica, não atropelar a galinha e não pisar nos pintos. Eu não gostava daquela galinha trapalhona e amostrada e uma vez, quase sem querer querendo, pisei na perna de um pinto, com fratura exposta, que me valeu um demorado puxão de orelha e um cascudo desses de rachar o tamanco. Mamãe fez logo um cataplasma de mastruço pisado e amarrou na perna do pinto e, em pouco tempo, ele estava ciscando de novo. Aquela galinha metida a besta me devia um cruzado. Mas a descarada da galinha parecia também que não gostava nadinha de mim. Uma vez eu estava sentado no chão, quase cochilando, com aquelas minhas canelas finas, carunchosas e cheias de feridas à mostra. Foi quando a miserável da galinha cismou de se encantar com uma das minhas feridas, a maior de todas, um medalhão bem no meio da minha perna; aquela que eu ganhei na queda do jumento; exatamente aquela que já estava em adiantado estado de cicatrização e com a casca já prestes a cair. Não podia ser outra a reação da esfomeada ave diante daquele petisco, daquela casca grande, crocante, tentadora, parecida com a cobertura tostada e luzidia de um empada. Não contou conversa. Com uma bicada rápida e certeira arrancou a casca pela raiz. O sangue espirrou e eu soltei um berro de dor, enquanto a infeliz, como se fosse a coisa mais natural do mundo, deu um cacarejado estranho chamando os filhotes e, com o bico, esfarelou a casca todinha e distribuiu com os pintos que disputaram até o último farelo. A primeira reação que eu tive foi de agarrar o pescoço daquela malvada e torcer até matar. Mas pensei nas conseqüências.Vingança é prato que se come frio, não é? Pois bem, preferi esperar um oportunidade melhor para me vingar. E a oportunidade chegou. Um dia saíram todos e foram à casa de minha tia que morava perto, e eu me escondi propositadamente e fiquei. Tinha chegado a hora da minha vingança. Agarrei um a um os pintos e joguei tudo dentro do pote de água de beber e depois tampei e fiquei escutando até o último piado. Depois da certeza de que todos tinham morrido afogados, fui brincar de soltar pião lá no terreiro. Não demorou muito e chegaram todos, e logo a minha mãe deu pela falta dos pintos porque a galinha estava cacarejando inconsolável, inquieta, procurando a cria. Procurei agir como se nada tivesse acontecido, mas logo percebi que minha mãe me olhava de um jeito muito estranho, ameaçador.
.
-Por que é que você não foi com a gente? O que é que você andou aprontando, seu cabra? Cadê os pintos que não estão com a galinha?
Não houve tempo nem de responder, porque um dos meus irmãos já tinha ido beber água e ao meter a concha de cuia no pote de barro trouxe um pinto morto e viu que o pote estava cheio de pintos mortos, e já vinha correndo dar a noticia à minha mãe. Quase sem querer acreditar, ela correu até a cozinha, levantou a tampa do pote e viu que a desgraça estava feita. A estas alturas eu já estava amuado num canto, chorando, adivinhando a pisa que ia levar. E não deu outra. Mamãe gritou para que eu mesmo fosse bem ligeiro buscar um cipó de tamarindo, que não quebra com facilidade, o que me deixou muito revoltado, porque além de apanhar eu ainda tive que ir buscar o instrumento do suplício, e perdi a conta do número de cipoadas que levei na bunda.
Foi o maior chá de cipó que eu já tomei na vida. Nunca mais esqueci aquela surra e aquele dia aziago, infeliz, em que nada do que se faz dá certo e a gente sai perdendo até para uma galinha. Mas, no fundo, eu escondia uma nesga de satisfação de ter me vingado daquela poedeira velha, caduca e buzuntona.