quinta-feira, 23 de abril de 2009

A Vingança

Dos vinte e cinco ovos que mamãe tinha deitado para a galinha de raça chocar, nenhum gorou. A ninhada nasceu todinha, forte, sadia; vinte e cinco pintainhos de penugem roxinha, alegres e barulhentos. A coisa mais fofa do mundo. Mas também, com todo aquele cuidado que ela tinha dedicado àquele afazer, dificilmente algum ovo teria se perdido. Eu era menino e ainda me lembro das muitas vezes em que ela se levantava altas horas da noite, principalmente quando chovia, para ver se a galinha estava cumprindo o seu papel de chocadeira, porque os ovos não podiam esfriar, e retirava um a um debaixo da gorda penosa, verificava a temperatura e examinava contra a luz da lamparina se todos os ovos tinham gerado ou se tinha algum goro. E ficava alegre e orgulhosa com o resultado do seu trabalho “ científico” ao ver a galinha choca, com seu cacarejado irritante, arrastando a prole pelo terreiro.
Todavia, isso significava restrições à minha liberdade de menino irrequieto e buliçoso. Mamãe não admitia que alguém dissesse nada e muito menos fizesse alguma coisa contra a galinha e os pintos, que tinham trânsito livre em todos os lugares, até dentro de casa e sempre deixavam sua marca de sujeira com as freqüentes cusparadas de cocô por toda parte. A gente tinha de andar com todo cuidado para não escorregar na titica, não atropelar a galinha e não pisar nos pintos. Eu não gostava daquela galinha trapalhona e amostrada e uma vez, quase sem querer querendo, pisei na perna de um pinto, com fratura exposta, que me valeu um demorado puxão de orelha e um cascudo desses de rachar o tamanco. Mamãe fez logo um cataplasma de mastruço pisado e amarrou na perna do pinto e, em pouco tempo, ele estava ciscando de novo. Aquela galinha metida a besta me devia um cruzado. Mas a descarada da galinha parecia também que não gostava nadinha de mim. Uma vez eu estava sentado no chão, quase cochilando, com aquelas minhas canelas finas, carunchosas e cheias de feridas à mostra. Foi quando a miserável da galinha cismou de se encantar com uma das minhas feridas, a maior de todas, um medalhão bem no meio da minha perna; aquela que eu ganhei na queda do jumento; exatamente aquela que já estava em adiantado estado de cicatrização e com a casca já prestes a cair. Não podia ser outra a reação da esfomeada ave diante daquele petisco, daquela casca grande, crocante, tentadora, parecida com a cobertura tostada e luzidia de um empada. Não contou conversa. Com uma bicada rápida e certeira arrancou a casca pela raiz. O sangue espirrou e eu soltei um berro de dor, enquanto a infeliz, como se fosse a coisa mais natural do mundo, deu um cacarejado estranho chamando os filhotes e, com o bico, esfarelou a casca todinha e distribuiu com os pintos que disputaram até o último farelo. A primeira reação que eu tive foi de agarrar o pescoço daquela malvada e torcer até matar. Mas pensei nas conseqüências.Vingança é prato que se come frio, não é? Pois bem, preferi esperar um oportunidade melhor para me vingar. E a oportunidade chegou. Um dia saíram todos e foram à casa de minha tia que morava perto, e eu me escondi propositadamente e fiquei. Tinha chegado a hora da minha vingança. Agarrei um a um os pintos e joguei tudo dentro do pote de água de beber e depois tampei e fiquei escutando até o último piado. Depois da certeza de que todos tinham morrido afogados, fui brincar de soltar pião lá no terreiro. Não demorou muito e chegaram todos, e logo a minha mãe deu pela falta dos pintos porque a galinha estava cacarejando inconsolável, inquieta, procurando a cria. Procurei agir como se nada tivesse acontecido, mas logo percebi que minha mãe me olhava de um jeito muito estranho, ameaçador.
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-Por que é que você não foi com a gente? O que é que você andou aprontando, seu cabra? Cadê os pintos que não estão com a galinha?
Não houve tempo nem de responder, porque um dos meus irmãos já tinha ido beber água e ao meter a concha de cuia no pote de barro trouxe um pinto morto e viu que o pote estava cheio de pintos mortos, e já vinha correndo dar a noticia à minha mãe. Quase sem querer acreditar, ela correu até a cozinha, levantou a tampa do pote e viu que a desgraça estava feita. A estas alturas eu já estava amuado num canto, chorando, adivinhando a pisa que ia levar. E não deu outra. Mamãe gritou para que eu mesmo fosse bem ligeiro buscar um cipó de tamarindo, que não quebra com facilidade, o que me deixou muito revoltado, porque além de apanhar eu ainda tive que ir buscar o instrumento do suplício, e perdi a conta do número de cipoadas que levei na bunda.
Foi o maior chá de cipó que eu já tomei na vida. Nunca mais esqueci aquela surra e aquele dia aziago, infeliz, em que nada do que se faz dá certo e a gente sai perdendo até para uma galinha. Mas, no fundo, eu escondia uma nesga de satisfação de ter me vingado daquela poedeira velha, caduca e buzuntona.

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