quinta-feira, 23 de abril de 2009

O SUICIDA

Era um homem alto, franzino e de aparência mal cuidada, que costumava sentar-se num banco da pracinha, perto da minha rua.
O local arborizado, muito ventilado e aprazível, era o ponto de encontro de velhos amigos que vinham, quase todos os dias, nos fins de tarde, pôr a conversa em dia, jogar gamão, dominó e baralho, ou simplesmente matar o tempo em conversas fiadas.

Casais de namorados tinham lá suas cadeiras-cativas e aproveitavam os cantinhos mais reservados e menos iluminados, para os beijos mais ousados e as eternas juras de amor.

Senhoras também costumavam passear empurrando com leveza e cuidado os carrinhos com os seus bebês, e a criançada se esbaldava em brincadeiras as mais variadas, num corre-corre e pega-pega sem fim.

Todos se abraçavam e se cumprimentavam e ali não havia lugar para tristeza e solidão.
Mas aquele homem solitário e triste, que se sentava sempre no mesmo lugar, enigmático e sempre sozinho e mal humorado, alheio a tudo o que se passava em seu redor, nunca falava e se alguém vinha lhe perguntar alguma coisa , apenas balançava a cabeça afirmativamente ou negativamente e, quando muito, deixava escapar, aborrecido, um muxoxo ou uma imprecação.

Como freqüentador assíduo da pracinha, muitas vezes eu o observava de longe e via o seu olhar perdido e distante e a amargura, a dor e o desânimo estampados em seu rosto. E eu tinha muita vontade de me aproximar daquele homem para ouvi-lo e, quem sabe, até ajudá-lo com uma palavra amiga. Mas temia algum tipo de reação desagradável.

Certa vez, acerquei-me de coragem e fui sentar-me junto dele. Sua primeira reação foi levantar-se bruscamente e afastar-se, mas eu o segurei quase instintivamente pelo braço e disse timidamente:

- Amigo, você não quer conversar um pouco comigo?

Parece que a palavra amigo despertou alguma coisa que estava adormecida no fundo do coração daquele homem e ele tornou a sentar-se pesadamente

Fiquei alguns instantes sem saber o que dizer, mas logo comecei a falar quase à queima roupa:

- Eu também sou um sujeito desastrado, muito amargurado e cheios de problemas. Aliás, quem neste mundo não vive cercado de problemas? Eu gostaria muito de encontrar alguém com quem eu pudesse conversar e desabafar.

Parece que a minha tática de querer nivelar-me a ele e penetrar no seu mundo surtiu efeito,
pois o homem começou a falar:

- Duvido muito que exista no mundo um sujeito que tenha mais desgraças do que eu. Eu só estou aqui sentado neste banco, porque nem pra morrer eu presto! Se eu disser que eu já tentei o suicídio três vezes, ninguém vai acreditar. Já tentei me enforcar, já tomei veneno e já tentei pular do alto de um prédio e sempre teve um intrometido que apareceu e me salvou.
-Eu acredito. Mas o que foi que aconteceu de tão trágico na sua vida, que o levou a tomar uma decisão dessas? Perguntei procurando esticar o assunto.

- Minha vida é uma porcaria, disse ele. Tudo o que pode haver de pior no mundo já aconteceu comigo. A vida para mim não significa mais nada, por isso não quero mais viver.

Senti uma pena muito grande daquele pobre infeliz e tentei confortá-lo. E contei-lhe até a história de Jó, aquele patriarca que vivia na terra de Uz, na antiga Palestina e que tinha sete filhos e três filhas. Era muito rico. Possuía sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas, e tinha também um grande número de servos. Era considerado o maior de todos os homens do Oriente.

Certa vez, encontrou-se Deus com Satanás e perguntou-lhe: de onde vens? E ele disse: fui rodear a terra e passear por ela.

Então disse Deus a Satanás: Observas-te o meu servo Jó? Não há ninguém na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, que se desvia do mal.

Respondeu-lhe Satanás: ele só é assim porque tu o cumulas de graças, a ele , à sua casa e a tudo o que tem. Abençoas as suas obras, e os seus bens se multiplicam na terra.
Gostaria de propor-te um teste: estende a tua mão e toma-lhe tudo o que tem e, com certeza, ele blasfemará de ti em tua face!

- Muito bem! Aceito o teu desafio, disse Deus. Tudo o que ele tem está nas tuas mãos. Faze como quiseres. Só te peço que lhe poupes a vida.

Poucos dias depôs, Satanás impôs a Jó uma terrível desgraça: todos os seus haveres e animais foram roubados e todos os seus servos mortos a fio de espada, como também todos os seus filhos e filhas juntamente com suas casas e seus bens foram arrastados por um grande vendaval e foram soterrados e mortos.

Então Jô, ao receber a notícia de sua ruína, rasgou as suas vestes, raspou a cabeça, cobriu-se de cinzas e, prostrando-se por terra, adorou a Deus dizendo: nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá. O Senhor me deu e o Senhor me tomou! Bendito seja o seu nome!
Em tudo isso Jó não blasfemou, não pecou e nem atribuiu a Deus o motivo de sua desgraça.

Encontrou-se Deus novamente com Satanás e fez a mesma pergunta: De onde vens?
E ele respondeu: fui dar umas voltas pela terra.

Então disse Deus a Satanás: observas-te o meu servo Jó? Apesar dos castigos que lhe impuseste, ele ainda conserva a sua integridade
Respondeu-lhe Satanás: nada disso me convence! Gostaria de propor mais um teste!
-Toca-lhe nos ossos e na carne e ele certamente blasfemara de ti na tua face!

-Pois bem. Ele está no teu poder; mas poupa-lhe a vida, disse-lhe Deus.

Então Satanás saiu da presença de Deus e cobriu Jó de chagas malignas, fétidas e purulentas, desde a planta dos pés até o alto da cabeça.

Então Jó, sentado no meio das cinzas, raspava as suas feridas com um caco de telha.
Vieram sua mulher e seus amigos e zombavam dele dizendo: depois de tudo o que Deus te fez, ainda acreditas nele e conservas a tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre!

Mas Jó respondeu: vocês falam como falam os loucos!Não recebemos o bem das mãos de Deus?.Porque não receberemos também o mal?
E em tudo isso Jô não blasfemou, não pecou e nem se rebelou contra Deus.

Então mudou Deus a sorte de Jó e deu-lhe o dobro de tudo o que antes possuíra. Ele teve novamente sete filhos e três filhas e tornou-se mais uma vez o homem mais rico e poderoso de todo o Oriente.


Terminei a minha história, na esperança de ter comovido o nosso suicida, mas de nada adiantou.

- Tudo isso que o moço contou é muito bonito, eu até agradeço mas não vale nada pra mim, porque nada vai fazer eu mudar de idéia. Vou tentar o suicídio novamente e desta vez, estou com umas idéias na cabeça e não vai haver erro.

Levantou-se e saiu sem dizer mais nenhuma palavra.

Fiquei muito triste e decepcionado comigo mesmo por não ter conseguido tirar da cabeça daquele infeliz uma idéia tão obsessiva e absurda.

O tempo passou. Uns três ou quatro meses. E eu nunca mais vi aquele homem lá na praça. Dava mesmo como certo que ele havia posto em prática os seus planos e se matado.

Uma tarde, quando menos esperava, avistei o homem sentado de novo no mesmo banco da praça.
Bastante admirado e curioso aproximei-me dele e perguntei:
- Lembra-se de mim?
- Acho que sim...é...agora estou me lembrando. Você me contou uma história muito bonita, não foi?

- Graças a Deus você está aqui e desistiu daquela idéia maluca de se matar. O que foi que aconteceu? Perguntei
.
E ele contou:
- Naquele dia , quando eu saí daqui fui providenciar o material para o suicídio: comprei um revolver novo e muito bom, uma corda bem resistente e um vidro de veneno do tipo mais forte e violento e tracei um plano que não tinha como dar errado.
De manhã cedo peguei o revólver, a corda e o vidro de veneno e fui para a beira do rio e procurei um bom galho que dava bem para dentro da correnteza. A minha idéia era tomar o veneno, me enforcar e atirar na cabeça, tudo ao mesmo tempo. Se alguma coisa saísse errada, ainda me restava cair na água e morrer afogado no rio porque eu não sei nadar.

Planejei tudo e subi na árvore, amarrei firmemente a corda no galho e no meu pescoço, bebi o veneno, saltei e atirei na cabeça.
Agora veja só o que aconteceu: quando bebi o veneno e atirei na cabeça, errei o alvo e a bala cortou a corda. Despenquei do galho e caí de cabeça para baixo na correnteza, bebi muita água e vomitei todo o veneno que tinha tomado e fui arrastado por uns quinhentos metros pelas águas e fui avistado por uns canoeiros que estavam na margem e eles saltaram na água e me salvaram.

Depois disso eu comecei a pensar melhor e ver que eu não devo querer ser o dono da hora da minha vida. A vida e a morte pertencem a Deus. Vou fazer como aquele santo homem da história que você contou e aprender a receber com resignação tanto o bem quanto o mal, das mãos de Deus, e procurar viver, que é o melhor que eu tenho a fazer.
Suicídio, nunca mais!

Apertou minha mão, me deu um forte abraço e saiu cantarolando.

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