quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O ENCONTRO DOS CACÓFATOS

Um dia desses eu saí pro açude prá pescar cá minha tia Zita e a comade cá dela, mais Nicodemo, Lino e Tatá. Tio Joca ficou cas meninas qui tão cá gripe e cus meninos qui tão cá tosse.
Levantamo cedo co cantar do galo, tomamo café com leite e fumo. Fumo andando, fumo entrando pelo mato, prosando, escuitando o canto dos passarinho, espiando o vôo razante dos anuns e dos piririguás . Tia Zita e a comade ca tia dela cas troxa de roupa na cabeça pra lavar no açude; eu ca cabaça de carregar água na cabeça; Nicodemo,Lino e Tatá cas minhoca e cas vara de pescar.
Quando chegamo no açude, Tia Zita não vendo o Lino e Tatá, pensou logo em afogamento e começou a gritar feito uma distambocada: cadê o Lino? Você viu o Lino?Vocês viro Lino? E Tatá? Vocês sabem onde Tatá tá? Ai meu Deus! Onde tará Tatá? Ela tava morrendo de medo porque Nicodemo nada qui nem piaba, Tatá ta aprendendo e Lino num nada nada. Só sossegou quando viu Tatá e Lino sentados na beira do açude cas minhoca nágua pescando pilombeta.
Enquanto tia Zita e a comade ca tia dela ficavam cus pano nágua esfregando, eu ficava abestaiado espiando a bicharada que vinha bem mansinha beber água no açude: o pato ca pata, o bode ca cabra, o boi ca vaca, o galo ca galinha e cus pinto, o gato ca gata, o porco ca porca, o cavalo ca égua, o jumento ca jumenta, o burro ca burra, o sapo ca sapa, o cágado ca cágada, o peba ca peba, o ganso ca gansa e os gansinhos ca gansa mãe.
Tava tarde, o sol tava ficando muito quente, e a gente resolveu vortá. Tia Zita e a comade ca tia dela cus pano lavado; eu ca cabaça cheia dágua de beber; Nicodemo, Tatá e Lino cas pilombeta e os jacundá que eles pegaro no açude.
No meio do caminho paramo pra vê um comício de uma tal de Elisa Botelho Pinto, qui quiria sê veriadora de Grota Funda e tava em cima de um caminhão falando pros eleitores:
- Povo de Grota Funda! Eu me chamo Elisa Botelho Pinto e sou candidata a veriadora dessa cidade e é a primeira vez que trepo em riba de um caminhão pra dirigir a palavra procês homens e mulheres de Grota Funda. Eu sei que os meus inimigos tão tacando o pau em mim por trás, porque são covardes e não têm coragem de tacar o pau em mim pela frente. Aqui nessa cidade tem muito político sapo. Vocês sabem o que acontece quando o sapo perde? A rã ganha! Tem também muito político réu. Vocês sabem o que acontece quando o réu perde? A ré ganha! Pois é... e eu vou ganhar!
Minha plataforma política é a educação acima de tudo. Se eleita for, vou fazer de tudo pela educação e vou dar tudo de mim para o povo: eu educo pobre, eu educo rico, eu educo preto, eu educo branco, eu educo feio, eu educo bonito, eu educo ateu, eu educo crente, eu educo grande, eu educo pequeno, eu educo gordo, eu educo magro, eu educo cego, eu educo gago, eu educo moço, eu educo veio, eu educo careca eu educo cabeludo, eu educo tudo...E não sou como o prefeito dessa cidade que é um grande burro e nem como a mulher dele que é uma verdadeira galinha...
Nisso, ela nota que alguns partidários do prefeito não gostaram nadinha do que ela estava dizendo, pegaram pedras do calçamento e já iam atirar nela, quando ela, rápida, sabida e matreira, arrematou se saindo de fininho:
- Como eu ia dizendo, e vocês não deixaram eu terminar, o prefeito dessa cidade é sim um grande burro de carga que, coitado, carrega sobre seu lombo o enorme fardo das mazelas, desgraças e misérias dessa cidade, e sua mulher é sim uma verdadeira galinha que acolhe os grotafundenses como pintinhos debaixo das asas, como uma mãe carinhosa. Foi calorosamente aplaudida.

Já perto de casa, e no meio da rua, demo de cara com uma briga. Havia uma grande roda de gente e, no meio,os dois valentões Zeca Brito e Ticão da Gata se atracavam como duas onças ferozes, num tremendo arranca-rabo.
Não demorou muito e chegou um destacamento de polícia, e um soldado achou logo de me perguntá:
-Qui é qui ta havendo aqui?
-Sei não sinhô, eu também cheguei agora.
-E porquié qui tão brigando?
-Também num sei não sinhô, porque quando cheguei já topei dando um na cara do outro.
-Quer dizer qui o sinhô não deu fé de nada?
-Como é qui eu ia dá fé, se Zeca Gama qui é altão e qui em pé istava na frente, com uma vara de futucá gado na mão nem fé deu, como é qui eu, qui sou batoré e qui em pé istava atrás, podia dá fé?
Depois eu fiquei sabendo que o pivô daquela encrenca tinha nome: uma tal de Zuzú, filha de Antonio Camisão e de Tudinha Savarana; uma boazuda, dessas de fazer pinico de barro dá pulo mortal, e qualquer cristão perder a cabeça. Nesse caso, ainda bem que ninguém perdeu a cabeça, mas Zeca Brito perdeu mais dois dentes da frente, dos poucos que ainda lhe restavam, e um pedaço da orelha direita, do coice e da dentada que levou de Ticão durante a briga.
Finalmente, e já passando das quatro da tarde, chegamo em casa, todo mundo cansado e morto de forme. O almoço, quase janta, foi pilombeta e jacundá frito; os que Nicodemo, Tatá e Lino pescaro no açude.
Tempo bom aquele que a gente ia pro açude pra vadiar, pescar, tomar banho e se divertir. Hoje o açude ta seco. E mesmo que tivesse cheio não ia adiantar porque eu não sei por onde anda tia Zita, e Lino, Nicodemo e Tatá tomaram chá de sumiço e num tão mais aqui pra gente matar as saudades.
Às vezes a saudade aperta e fica me azucrinando feito uma mutuca. Então eu me assento debaixo do pé de tamarindo e começo a brincar de recitar verso, pra encher a lingüiça do tempo.Esses são para Zita, minha tia querida:
Eu ozente, tu ozente
Tia Zita
Eu di tu e tu di eu
Cuma pode nóis passá
Eu sem tu e tu sem eu?
Tu pra cá num vem
Porque se aí ta ruim
Tá pió cá
Eu pra lá num vô
Pois odeio esse cafundó
Pois tu pra lá teja
Qui eu pra cá tô.

Fico me lembrando de Tatá. Onde tarará Tatá. Diseero qui Tatá tá casado. Qui Tatá tem filho. Qui os filho de Tatá tão tudo grande. E eu nem sabia qui Tatá tinha filho. Ai meu Deus, como o tempo passa desembestado e a gente nem vê!
Fico me lembrando da ingenuidade e das besteiras de Lino. Crente fervoroso, ele odiava carnaval, Quando chegava a folia, a gente não perdia a oportunidade de mexer com ele:
-E aí, Lino, vai sair em que bloco?
-Só saio no bloco dos que não foram, respondia sério. Carnaval é coisa do cão, é festa pagã, é o culto a Baco!
E a gente dizia brincando: Lino, cuidado com o cacófato! Mas, ficava tudo na mesma, porque ele não fazia a menor idéia do que viesse a ser um cacófato.
Sinto também muita saudade do Nicodemo. Meu amigão, grande pescador de piaba, pilombeta, cari e jacundá. Sujeito brincalhão e pra lá de engraçado. Jogava no Guaramiranga Futebol Clube, lá em Guaramiranga, cidadezinha serrana e florida, lá no interior do meu Ceará.
Certa vez Nicodemo foi jogar na cidade de Baturité, contra o Baturité Sport Club, que tinha uma rivalidade antiga com o Guaramiranga, e o jogo era uma revanche de vida ou morte.
Todo mundo confiava na temida “canhota-canhão” do Nicodemo e, como não poderia deixar de ser, encarregamos o craque não só de trazer a vitória a qualquer custo, como também, por ser o mais letrado do time, de avisar, o mais depressa possível e seja lá de que jeito fosse, o resultado do jogo, que interessava a todo mundo e era uma questão de honra.
Mas, o dia acabou, todo mundo numa expectativa danada, e necas de notícias do Nicodemo. O que teria acontecido?
Finalmente, no dia seguinte, já de tarde, chega o tão esperado telegrama do Nicodemo, que dizia:
-Almocemo, viajemo, demoremo mas cheguemo, discansemo, concentremo, joguemo, sisforcemo, se matemo, num ganhemo nem perdemo, impatemo, fracassemo, jantemo, regressemo, num telefonemo porque num pudemo, telegrafemo, assinemo, Nicodemo.

Não se sabe aonde Nicodemo foi buscar tanta inspiração para esse primor de redação.
Vez por outra, ao remexer no meu baú de recordações, fico me lembrando e rindo deste epísódio pitoresco e não consigo esquecer essa “pérola” do Nicodemo.

De minha parte, o que eu posso dizer a você, meu caro amigo Nicodemo, se é que, por um desses raros caprichos do destino algum dia essa singela crônica vier a pousar em suas moas como uma abelha ou uma borboleta errante, e você tiver a oportunidade de lê-la, são somente algumas palavrinhas da mesma safra, lavra e eufonia das que você usou no seu famoso telegrama que, agora, mesmo muito tardiamente quero responder em nome da turma:

-Quando lemo, num acreditemo,num aceitemo, sizanguemo, esperniemo, choremo qui quase morremo, mas depois se acalmemo, relaxemo, num guentemo, brinquemo e quase se acabemo de tanto que rimo. Num respondemo logo porque num pensemo e vacilemo, mas nóis num sisquecemo, agradecemo e assinemo

Um comentário:

Luciana Pinto disse...

Maravilhoso, seu Oiton... de bolar de rir. Adorei!!

Um fim de ano cheio de saúde e paz e em 2009 muito mais inspirações como esta! Abração.