sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O MILAGRE DAS MELANCIAS

Aquele vetusto e solitário mosteiro de Nossa Senhora de Lourdes, ainda está lá, no alto da verdejante colina, desafiando o tempo, firme como uma rocha, emoldurado por sicômoros e ciprestes frondosos e pelas centenárias palmeiras imperiais, onde graúnas, xexéus e corrupiões, gorjeiam seus trinados, na sinfonia matinal da natureza.

O céu ainda é o mesmo, quase sempre nublado e melancólico. O clima de montanha nos oferece um frio ameno e agradável. O sol tímido e preguiçoso, tem sempre um pretexto para quase sempre acordar tarde e não sair.

Neste recanto bucólico e abençoado, morada do silencio e da paz, na aprazível serra de Guaramiranga, lá no meu Ceará, eu tive o privilégio de viver, por alguns anos, na companhia dos austeros monges capuchinhos, entoando as matinas e laudas e pude conhecer de perto um virtuoso e santo monge, que tinha a fama de milagreiro.

Na cidadezinha de Guaramiranga, que se derrama desordenadamente aos pés da serra, todos conheciam Frei Roberto, pois dele já tinham recebido alguma bênção ou favor e ninguém duvidava de suas virtudes e das histórias de milagres que a ele eram atribuídas. O mais famoso, o milagre das melancias, aconteceu mesmo e eu sou testemunha.
Havia na cidade, um caboclo, de nome Nôzinho, amigo dos frades, muito trabalhador e temente a Deus e que possuía um roçado, nas cercanias do mosteiro, onde costumava cultivar melancias.

Apesar dos cuidados que o caboclo dedicava à plantação, não havia jeito: nunca conseguia colher uma safra que prestasse, pois as poucas melancias que medravam, não se desenvolviam e não se prestavam ao consumo humano e só os porcos aproveitavam.
Um dia, o caboclo, que conhecia bem os poderes de Frei Roberto e nele depositava muita fé, teve a idéia de procurá-lo para contar-lhe sua frustração e pedir ao santo homem que abençoasse o seu roçado ou, pelo menos, colocasse os pés naquele terreno infrutífero.
Dito e feito: Frei Roberto, solícito e caridoso como sempre, atendeu ao rogo do caboclo e organizou, depois da missa, uma pequena romaria à roça de Nôzinho, com a participação de alguns fiéis e de vários frades.
Naquela época eu era noviço e, como não poderia deixar de ser, fui também incluído naquela santa romaria.
Caminhamos por cerca de meia hora por uns atalhos cheios de urtigas, carrapichos e pega-pintos. Quando chegamos ao local, já nos esperava Nôzinho, com a mulher e os três curumins, no meio do roçado.
Frei Roberto pediu silêncio, vestiu o sobrepeliz, cingiu-se da estola e começou a rezar contrito, os olhos cerrados e voltados para o céu, em colóquio profundo com Deus. Depois retirou do bolso do hábito, um pequeno frasco com água benta e traçou no ar uma larga cruz, espargindo e abençoando toda a plantação.
Mãos postas e de joelhos na areia, a tudo Nôzinho acompanhava com os olhos marejados da mais autêntica fé

Alguns meses se passaram e chegou finalmente a época de colheita. Mas ninguém se lembrava mais da romaria de Frei Roberto. Nôzinho, porém, de nada tinha esquecido: depois da missa foi ter com Frei Roberto e, sem nada adiantar, convidou-o a ir ao seu roçado, porém, com uma condição: todos os frades do convento teriam que ir também.
Era uma missão difícil para o frade, convencer o Superior do Convento a interromper a rotina e liberar todo mundo para ir simplesmente a um roçado. Mas, como tratava-se de um pedido de Frei Roberto, tudo se tornou fácil. E, assim, lá se foi aquela fradaria toda, morro abaixo, rumo ao roçado de Nôzinho, fazer o quê, ninguém sabia
Ao chegar, logo nos deparamos com uma grande cabana, bem alta e rústica, recém construída no meio do roçado, com galhos e cipós entrelaçados com palhas verdes e, embaixo, meio escondido com folhas, um enorme amontoado de melancias grandes e pesadas, madurinhas de dar água na boca.
Todos ficamos muito admirados e sem entender bem o que estava acontecendo.
Foi quando Nôzinho, terminando os salamaleques e beija-mãos dos frades, resolveu falar, matando a curiosidade de todos:

- Eu chamei os reverendos aqui, primeiro para que todos vejam o milagre que o Frei Roberto fez, depois que rezou e jogou água benta no meu roçado. Quero pagar também a promessa que eu fiz de dar a Frei Roberto e aos outros frades, a primeira safra todinha das melancias do meu roçado. Pois taí ! O santo é forte, o milagre é grande e tem melancia prá todo mundo!”

Dizendo isso, tirou da cintura um reluzente e comprido facão e começou com um golpe só a abrir, uma a uma, as melancias em bandas, com a destreza de um samurai e saiu distribuindo uma banda para cada frade. Reservou, porém, a maior e mais bonita, que entregou inteirinha a Frei Roberto.
Apesar do esforço, o frade, que era magro e franzino, não conseguiu sequer erguer aquela melancia descomunal e precisou de auxilio para levantar a oferenda ao céu e rezar: -“ Bendito sejas ó Deus pai onipotente, pela abundância dos frutos desta horta. Nós te agradecemos porque mostraste o teu poder e a tua misericórdia por intermédio do teu mais humilde servo...”

Não houve tempo nem para dizer amém, pois se o calor era grande, a sede era maior ainda e os frades, esquecendo a cerimônia e a mortificação da gula, caíram como piranhas famintas sobre as indefesas melancias que, em pouco tempo, foram destroçadas e reduzidas a um montão de cascas.
Todos se fartaram e ainda teve frade que levou melancia prá casa.
A partir daí, nunca mais faltou safra de melancia no roçado de Nôzinho. E muito menos no convento.

Um comentário:

Ildete Medeiros disse...

Essa riqueza de detalhes tem o poder de nos transportar ao cenário: a horta das melancias. Que delícia! Deu até pra sentir o docinho dessas frutinhas. bj