sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Traquinagem

Minha mãe sempre dizia que lugar de criança não era no curral, porque era lá que o meu pai, que se chamava João Batista, costumava ferrar bois, vacas e bezerros, com o ferro em brasa, com a sua marca JB, que era para garantir o seu direito de propriedade. Lá também eram abatidos bois, bodes, carneiros e porcos, que eram pendurados no mourão, de cabeça para baixo, e depois sangrados, esfolados, esquartejados e repartidos.
No início, quando assistia àquelas cenas brutais, eu ficava pálido e trêmulo de medo e muitas vezes saía correndo apavorado, chorando, ao ouvir os berros lancinantes dos animais que esperneavam de olhos esbugalhados, nos estertores da morte, e também quando assistia ao bárbaro ritual de castração, ferração ou marcação do gado, e via a brasa do ferro penetrar no couro dos bichos, com aquele chiado de fritura e o cheiro forte de carne queimada. A ferida ficava em carne viva durante algum tempo e depois ia aos poucos cicatrizando até a marca ficar bem definida e destacada no pelo da anca do animal..
Com o passar do tempo eu fui me acostumando, achando tudo aquilo muito natural e me tornando insensível à selvageria daquele cerimonial macabro, e achava até bonito ver a queda do quadrúpede quando recebia a fortíssima pancada na nuca com o dorso do pesado machado de ferro. Sentia até orgulho de meu pai que tinha fama de derrubar o boi logo na primeira machadada.

Minha mãe não concordava com nada daquilo e até chegava a proibir a nossa permanência nos currais do gado, porque éramos ainda crianças, mas o meu pai fazia vistas grossas e dizia que filho homem tinha que ser cabra-macho e assistir a tudo para ir logo aprendendo, se acostumando e perdendo o medo. Na sua santa ignorância, ele não atinava no mal que aquelas cenas fortíssimas poderiam nos causar. Como, de fato, causaram, principalmente porque toda criança tende a imitar tanto as coisas boas quanto as ruins que vê e ouve dos adultos.
Naquele tempo as opções de brinquedos não eram muitas e a gente vivia inventando brincadeiras e aprontando alguma traquinagem, na mesmice daquela vida simples e monótona do sertão.
Foi numa dessas reinações que meu irmão Expedito teve uma idéia estapafúrdia:

- Vamos brincar de ferrar boi?
- Vamos! respondi com entusiasmo e fui logo correndo buscar o ferro-de-ferrar-boi de meu pai.
Colocamos o ferrete no tripé de pedra ainda com algumas brasas do almoço.
Tudo pronto, o marcador já estava quente, pegando fogo, mas cadê o boi?
Foi aí que avistamos o nosso irmão Aloísio deitado de papo pro ar, nu da cintura pra cima, dentro de um caçuá forrado com folhas de bananeira. O almoço tinha sido peixe do rio, e ele tinha batido um prato fundo de pirão escaldado de cangati ovado e ressonava o sono dos justos. Era o boi que estávamos procurando.
Retiramos o ferro do fogo, vermelhinho, crepitante, já bem no ponto, e eu fui o encarregado de fazer a ferração. Aproximei-me na ponta dos pés para não acordar o “boi”, escolhi o lugar e atochei o ferro em brasa bem no meio do bucho do dorminhoco.O que se ouviu foi o chiado do ferro queimando a carne, e o arrepiante berro do coitado do Aloísio, que deu um grande pulo e saiu correndo gritando de dor, apavorando todo mundo. Foi então que a gente percebeu a grande besteira que tinha feito, e fomos logo correndo para a casa da nossa tia que morava perto, pois ela era a nossa advogada e defensora nos momentos difíceis e de pisa iminente. Chegamos amedrontados, pálidos e ofegantes, e a tia, desconfiada, foi logo perguntando:

- O que é que vocês andaram aprontando dessa vez, seus cabras? Boa coisa não foi, não é?.
- A gente tava brincando de ferrar boi e a gente ferrou o Aloísio.
- Valei-me minha Santa Rita de Cássia! Dessa vez vocês passaram dos limites e eu não vou poder fazer nada pra salvar a pele de vocês, dizia ela horrorizada.
- Pelo amor de Deus, tia, salve a gente, implorávamos de joelhos, de mãos postas e jurando nunca mais fazer aquela doidice.
- Vou ver o que posso fazer. Mas não garanto nada!
Não demorou muito e entrou minha mãe de casa a dentro, virada no cão, com um quente e dois fervendo.
- Não adianta vocês ficarem aí se agarrando à saia da tia de vocês! O que vocês fizeram, seus pestinhas malvados, não tem perdão. Não adianta correr para cá e pedir arrego. Podem ir logo preparando o couro porque o cipó vai cantar!
Dizendo isso, agarrou a gente pelas orelhas e saiu arrastando um de cada lado, até em casa. Chegamos com as orelhas em brasa e parecendo que tinham aumentado muito de tamanho. Mas, isso foi só a preliminar, a entrada, porque logo depois veio o prato principal que foi meia dúzia de tabefes no pé do ouvido e, para fechar o expediente, uma surra de cipó de goiabeira, dessas de deixar a bunda roxa.
Aproveitando a raiva, mamãe pegou meu pai e deu o maior esculacho:

- É nisso que dá, você, seu cabeça de vento, seu jumento teimoso, deixar as crianças ficarem assistindo a essas cenas de crueldade no curral do gado, pra depois eles imitarem e fazerem essas malvadezas com as pessoas. Já pensou se ao invés de ferrar o boi eles tivessem escolhido a brincadeira de matar o boi? Era uma vez o Aloísio.
Meu pai ainda teve coragem de debochar:
-Besteira, mulher! O Aloísio agora tá ferrado e tá marcado. É até bom, porque ele não vai mais se perder da gente e nunca vai poder dizer que não faz parte da família.

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